BHADRIKA
A GAROTA DANÇARINA DE MOHENJO-DARO
(2600-2500 a.C.)
As luzes explodem em flashes. Um símbolo subjugado por olhos aguçados, mas incógnitos. Paredes abrigam vagas percepções. O tempo, sereno, é desconstruído em potências decaídas de eletroquímica e carbono.
— A garota dança?
A projeção contempla o corpo e as feições da estátua. O avanço pelo todo se reflete na parte petrificada. Na perfeição dos contornos. Nas formas adjacentes. Nos seios repletos de força e latência. No mergulho pelos sulcos de um ventre pétreo. Nos lábios metalizados. No olhar que recorda um passado. De dentro do contorno germina o repuxo. Imersão. Uma manifestação que pulsa por dezenas de eras. Depois, a escuridão tomou conta do mundo. Surge, então, a vida.
Do céu, entre as nuvens. Do chão, entre a areia e a poeira. No meio da aldeia, em frente ao mercado central, um vulto se agita. Diante da multidão de gente, um movimento poderoso. A garota dança, rodopia, alegre, irrefreável, impenetrável. Perto dali, uma mulher nua espera em sua casa. A garota emana. A mulher evoca. A garota, com sua aparência ditosa, arroja-se diante de um mundo em expansão. A mulher, consciente de seu amor, ressignifica os percursos de sua própria vida. A garota cria toda a harmonia. A mulher expande toda a esperança. A oscilação de seu fulgor transcende as construções de uma cidadela corretamente planejada.
A garota move-se em superfícies plurais. Sua energia se espalha pelas afluências. Seu poder fortalece as múltiplas embarcações. Centenas de toras atracam nas enseadas e flutuam pela superfície das águas do Vale do Indo. Os trabalhadores carregam e descarregam os produtos trocados em outros impérios dos mundos mais distantes da Mesopotâmia e do Egito. No horizonte, flamam as centelhas dos barcos com carregamentos de jades, turquesas e lápis-lazúlis, de cerâmicas, pedras preciosas e tecidos que navegam do Golfo Pérsico ao delta do Xatalárabe.
A garota vê um homem que retorna do trabalho. Ressentimentos subvertem a paixão e o afeto. A mulher nua espera com a mão no quadril. Suas pulseiras e seus colares vibram diante de espectadores que quase não a percebem. Do outro lado, a garota dança e roda seu corpo intocado no ritmo dos seus passos e de seus desejos secretos. As aldeias e vilas fulguram no encanto de seus movimentos. A cidade cresce ordenada por sua dança. Os domicílios, feitos de tijolos e argamassa terracota, resplandecem na absorção de sua beleza. A cidade se transforma numa imensidão!
A garota concentra suas potências. As águas provêm dos encanamentos. Fluem pelos reservatórios artesanais e sistemas hidráulicos. O homem carrega sua bacia retirada dos poços públicos. Caminha na direção de sua pequena residência. Lá está sua mulher, sua amada. Ele potente. Ela nua. Os dois deitados no chão. Ele a ama: o tempo passa conjecturado nas ações das majestosas forças, no contato das divindades, na erupção das vontades, na pulsação selvagem das sombras e dos raios, dos corpos e do suor, da seiva que urge e que aclara por perspectiva o movimento de todo o mundo existente e inexistente. A garota observa toda a cena. Ela rodopia furiosa, enquanto luzes enigmáticas e penetrantes se arrojam por sua derme lisa e perfeita. Os olhos do coração pulsam numa vontade profunda e errática. Ela também ama aquele homem. Seus anseios atravessam as sensações, vertem-se diante das inexploradas cavernas, tocam as inofensivas flores rosadas das puras florestas ainda virgens, sufocam diante dos vulcões que jorram lavas incandescentes, numa mistura relutante de gozo, ódio e raiva.
As guerras não cessam. Os habitantes trabalham. As cidades vivem, espremem, morrem. A garota dança e cria com seus poderes a inovadora matemática e a escrita que facilita o comércio. Ela esculpe, com seus brilhantes olhos, os selos em pedras: um ser de três cabeças encanta as crianças que correm alegres entre os edifícios, pelo imenso celeiro, diante dos banhos públicos, pelos esconderijos que passam por debaixo dos sistemas de drenagem que ordenam os dejetos e burlam desejos.
Sua adversária, a mulher, era mais bela. O som acompanha as vozes. Os sacerdotes oram em seu grande salão. Percebem o mal se aproximando. A mulher caminha diante de um estreito precipício. No giro da cadência e do bailado, a garota lança seu encanto, que aprisiona o corpo de sua inimiga. A mulher, amada, cai na armadilha. No cárcere invencível. No escuro infinito. A razão dilacerada no firmamento de agonia. A alma enclaustrada na dimensão do impossível. Morte e destruição avançam. Há dor e aflição por entre as misteriosas rotas que existem no interior do coração dos vales, na superfície de respiração das montanhas. A garota dança. A cidade pulsa. Há reprodução elaborada em labirintos de lábios, cheiros e beijos. Festa e música por todos os lados.
A garota dança e vive no encalço de sua liberdade. Na centelha propulsora de suas vergonhas. No sopro da desforra e no hábito solene de seus próprios medos. Os cabelos da mulher já não pendem mais sobre aqueles seus ombros magros. A garota flutua com seu corpo iluminado. Feliz, ela baila e espera. Aguarda pelo retorno do homem, amado e amante. Reverte seu encantamento em facões, escudos, torres e fortificações que protegem os limites do centro administrativo contra as inundações e as tribos longínquas.
Os passos ardem no calor da terra batida. A garota dança. Ela rodopia, voando serena e perene. Há um mundo dentro dela. Uma história contada. Uma memória a ser preservada. Um mistério escondido e revestido de correntes de barro que permanece jurado por segredos indecifráveis. Emoções e gestos que os próprios oráculos desejariam ocultar. O homem volta do trabalho. Ele percebe o terrível fim de sua amada. O ódio o consome, e ele pega sua afiada faca. Procura entre becos rudes, vielas sinuosas, casas licenciosas. O homem encontra sua caça e sela seu destino. Ele corre com sua faca em direção à garota. Revelações! A garota move-se em espiral e reverte sua luz, seu poder, sobre ele. O homem cai no chão. Tempo e espaço digladiam-se nos limites de um vórtice que espalha um turbilhão de fluidos. O homem penetra numa outra dimensão. Sua alma agora também está presa. Sua consciência jaz escravizada pela magia e pelo encantamento dos inumeráveis prazeres da garota. Ela completou sua vingança perfeita.
— A garota dança?
Em algum momento, num lugar distante do conhecimento e da razão, a garota dançarina decidiu cobrir sua cidade e inundá-la com água e lama, com a alma do rio Indo. Resolveu não só dominar a vida, mas também renovar o sentido de tudo o que é atual e presente. Dona de todo o enredo, ela controlou o seu tempo e, a partir de então, todos os outros destinos. Ela apagou sua chama, descortinou sua centelha, remendou seu mundo e a história de seu povo.
A garota dança alegre e feliz. Com aquele homem ela concebeu dezenas de filhos imortais, e seus filhos, dezenas de descendentes. Juntos, eles construíram domínios indestrutíveis. Ela cobriu de bronze e de cera o corpo daquela mulher. Banhou de cobre e metal o seu coração. Moldou-a em perspectiva escultural num infinito e numa permanência que desafiam o tempo. Por ironia, sarcasmo ou algum instinto de complacência, deu-lhe o nome de Bhadrika, que em hindu significa “mulher com felicidade”.
— A garota dança?
A garota continua seu baile atemporal. Ela permanece traduzindo sua força num primoroso movimento atraente e cíclico. A cada dia ela nos convida a contemplar sua arte para observar a sua eterna trama histórica.
As luzes se afastam dos flashes. Os olhos se libertam dos símbolos. As paredes concretizam verdades. O tempo, que agora é ciência, brilha diante da liberdade do corpo outrora petrificado daquela mulher.
TEMPO HISTÓRICO: IDADE ANTIGA
ESPAÇO GEOGRÁFICO: ÁSIA - VALE DO INDO - ÍNDIA
DATA DE PUBLICAÇÃO: 29/03/2024
AUTOR: FABIO GOMES
REVISÃO: CIAENTRELINHAS
ILUSTRAÇÃO: www.canva.com / @agung-studio / @pratiksha-ps-images