
2070 a. C.
Estamos no fim de uma era diluviana.
Os deuses jubilavam na compreensão do cosmos. Os serem humanos trabalhavam por toda a amplitude da Terra. Um homem chamado Ming e uma mulher chamada Xia se olhavam. Renk-Xio sentia ódio. Enquanto isso, no abismo interminável, os divinos Três Soberanos e Cinco Imperadores bailavam no escuro palco das constelações.
Sucesso!
Os humanos, liderados por Yu, haviam evoluído. Conseguiram uma façanha. Cavaram fundo, bem fundo, encantaram o véu natural e, ao extraírem dele as raízes, os arenitos e a argila, acharam, por fim, o nível perfeito. Ming e Xia contemplavam aquela obra máxima: os canais, que quebravam os granitos e os basaltos das montanhas e reinavam sobre as inundações do Rio Amarelo, força da natureza que jaz submissa. Mas Renk-Xio estava triste e vagava em ilusões e incertezas – seu fardo ancestral.
Depois de dias trabalhando, incansáveis, os humanos puderam repousar. Enquanto recolhidos na relva, suspiravam com o coração fustigado de regozijo. Ainda que sujos de areia, de plantas e de silte, eles celebravam, como em um transe, um sonho infinito. Perto dali, Ming e Xia, com seus corpos gigantes e nus, pareciam dois monstros, cobertos de lama e detritos. Agarrados, rolando pelo chão e encharcados de barro e sedimentos, eles sentiam no tato o dom da pura energia vital. Por cima dos montes, Renk-Xio os observava com a visão de um dragão, a boca de um tigre e a língua de uma serpente. Raiva e culpa. Afinal, tudo aquilo era fruto da encarnação da benevolência dos antepassados.
— Por que ele deveria se sacrificar?
Renk-Xio, repleto de pavor e tomado pela fúria, aproximou-se de um dos novíssimos canais fluviais. Começou a punir a terra, salteando por entre as finas camadas do solo. Não havia nada que pudesse impedir a sua raiva. Mas ninguém sabe ao certo se ele escorregou em uma pedra lisa ou se jogou. O que viram foi um velho proferindo palavras de rancor e bravura, projetando sua face para cima, com as mãos erguidas. Nesse momento, sua figura, ovalada e corcunda, projetou-se no canal, desaparecendo nas correntezas fluviais.
No final daquele dia, os trabalhadores puderam finalmente voltar para suas casas, satisfeitos e orgulhosos. No meio do caminho encontraram as vestimentas de um homem na margem do rio. Nos campos repletos de vida e beleza, viram um Renk-Xio alado passar por cima da cabeça de um bode.
A noite deitou-se por uma vastidão nunca antes vista. Havia muito o que comemorar: festa, dança, bebidas e amores explícitos. Na manhã seguinte, aqueles homens e mulheres acordaram renovados de desejos, pois enxergavam o início de uma triunfal fase de suas vidas. Foi então que Ming e Xia se revelaram como em um princípio, um caminho repleto de pecados e de rupturas: eram filhos de Renk-Xio.
TEMPO HISTÓRICO: IDADE ANTIGA
ESPAÇO GEOGRÁFICO: CHINA
DATA DE PUBLICAÇÃO: 28/09/2025
AUTOR: FABIO GOHMEIZ
REVISÃO: CIAENTRELINHAS
ILUSTRAÇÃO: WIX / COPILOT