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ARCANJÓPOLIS

Ilustração do conto ARCANJOPOLIS escrito pelo autor Fabio Gohmeiz e publicado no site fantastorica.com. Trata-se de um conto que narra uma aventura fantástica na idade média, no período do feudalismo.

1300 d. C.

        A lenda conta que eu nasci no tempo das rochas. De um sono profundo, atormentada que estava por vulcões e lavas, um dia me reconheci viva. Solidão e deserto me acompanharam durante tempos imemoriais até que um terremoto fez surgirem em mim montanhas e um pequeno rio. Seres voadores, rastejantes e nadadores me tocavam e me usavam. Ventos fizeram a erosão e transformaram o cânion em um vale com pequenos pântanos. Uma floresta surgiu, brotando-me árvores e frutos. Eu me sentia feliz.

          Milhares de anos se passaram.

     Era o tempo do fogo. Logo apareceram os homens. Ditos selvagens, eles vieram de grandes jornadas migratórias e começaram a morar em minhas grutas e cavernas. Faziam fogueiras e plantavam em mim as sementes de suas vontades. Eles cantavam e dançavam, e eu aprendi a entender o que eles falavam. Logo eles guerrearam e mataram, e eu aprendi sobre a crueldade e a maldade. Eles avançaram e, com seus instrumentos de metal, construíram em mim pequenas aldeias. Dezenas de gerações forjaram civilizações que viveram e desapareceram em mim. Por fim, eu estanquei e virei um lugar esquecido, abandonado e cheio de ruínas. Isso era muito triste.

 

          Centenas de anos se passaram.

 

        Era o tempo das águas. Guerreiros descendentes de antigas tradições latinas cruzaram minhas potencialidades nas extensas planícies das regiões da Saxônia e da Boêmia, perto da Alta Lusácia. Viram que em mim passavam os rios Moldava e Elba, que a água era boa, assim como a terra. Decidiram então ficar. Seu líder, de nome Hector Blumo Arcanjo, tinha uma espada poderosa e cintilante. Naquela noite, do alto de um monte, Arcanjo empunhou sua espada e fez um juramento. Um trovão negro reclamou nos céus. Aqueles que o acompanhavam, ajuizados pelos sentimentos de pavor e benevolência, ajoelharam-se e juraram protegê-lo. Eles festejaram juntos e nos dias que se seguiram me reconstruíram. Eu me sentia novamente feliz e radiante. Uma nova aldeia! Uma nova vida! A paz reinou por alguns anos, até que Arcanjo morreu de uma traição incurável. Desprotegida, fui rapidamente dominada por povos adjacentes. Um imperador de nome Afonsus me domou e me anexou aos seus territórios. De certa forma, eu estava me sentindo superimportante, pois agora, mesmo pequenina e resumida a uma vila de camponeses, eu fazia parte de um império. Foi então que os herdeiros de meu fundador, para homenageá-lo, deram-me o nome de Terra Sancta de Arcanjo.

 

         Duzentos anos se passaram.

 

      Era o tempo das árvores. Foi em um dia de sol que ele apareceu com seu imponente cavalo e sua armadura de metal dourada. Trazia consigo uma legião de guerreiros, nobres e servos. O homem parou na minha área central. Falou que aquele lugar agora fazia parte de suas possessões. Os camponeses que viviam aqui nada puderam fazer e apenas aceitaram a dominação. Eu me assustei com tamanha grandiosidade. Fiquei encantada quando do alto da montaria ele retirou seu elmo e eu vi pela primeira vez os olhos brilhantes de um anjo. Eles o chamavam de conde Otthar Daliboorg III, da casa de Akriemas, um ramo descente de antigas famílias patrícias.

 

         A partir de então, tudo mudou.

 

        Era o tempo dos ventos. O conde e seus homens trataram de fazer em mim consideráveis mudanças e transformações. Exploraram minhas minas de ferro e criaram fundições e oficinas. No alto de uma montanha, ergueram um castelo que se tornou a morada de nosso líder e a sede administrativa – era meu coração batendo. Uma muralha repleta de torres de proteção foi pavimentada nos meus arredores e me cercava em toda a minha extensão. Estradas, pontes e dois portos fluviais, um no Elba e outro no Moldava, foram construídos. Negociaram tratados políticos e comerciais com cidades vizinhas, e eu agora tinha ligações terrestres com Praga, Kutná Hora, Cheb, Brno, Dresden, Leipzig, Meissen, Bautzen, dentre outras. Padronizaram as moedas ao passo que criaram guildas mercantis, então todas as mais importantes rotas comerciais passavam por minhas terras: a rota do Rio Reno, trazendo o ferro, os tecidos, o vinho e a madeira; a Hanseática, com o sal, o peixe, os grãos, as peles e os outros metais; a do Mediterrâneo, com as especiarias, o ouro e os escravos; a da Boêmia, trazendo a prata, o cobre, o ferro e o vidro; a europeia, com a seda, as especiarias e a porcelana; e a do Báltico, com o âmbar, a madeira, as peles e o trigo. Era um verdadeiro festival de caravanas, mercadores e viajantes. Por fim, minha população cresceu e houve a formação de um potente hoste de mercenários, financiado pela elite nobre e mercantil, disposto a defender-me com a vida e a morte. A verdade é que em menos de 10 anos eu virei uma grande cidade, a maior do império e, diziam alguns, a mais importante de todo o mundo existente. Eu era poderosa e invejada; era conhecida, rica e sofisticada. Uma cidade urbanizada na qual quase tudo acontecia. Tornei-me a capital do condado de Akriemas e recebi um nome oficial: Arcanjópolis.

 

        No meu auge, eu era o ápice da civilização.

     Era o tempo das auroras. Nesse momento, eu era a cidade turbilhão, o espetáculo de várias multidões. Um amontoado de gente que de todos os lugares se espalhava pelas minhas construções, pelas minhas ruelas, pela minha praça central, local das feiras, das trocas, das vendas e dos comércios. Eu era maior que Roma e Constantinopla juntas. Tudo de bom e de ruim acontecia por aqui. A vida era a latência em forma de pedaços de amor e pavor. Lembro-me do sucesso que era a Tenda do Presságio, localizada nas minhas regiões mais ricas e nobres, nas partes montanhosas da Alta Arcanjópolis. Local comandado pelo rico e trambiqueiro casal Aldreiud e Hilda Tanneunberg. Lembro-me das confusões dentro da Taberna Arcanja, localizada na podridão das minhas regiões mais baixas, na chamada Baixa Arcanjópolis. Emmanuelle Prestys, a dona do local, que, para além de suas relações sexuais com os ajudantes e irmãos Richardy e Samuel Jackequies, vivia de usar sua clarividência para tentar saber o dia e a hora exata em que iriam acontecer as brigas entre os frequentadores. Ela só não conseguiu perceber que o germe do meu fim cresceu ali dentro de suas paredes. Não posso me esquecer também da Freguesia Episcopal, uma área rural fora das muralhas, mas ainda pertencente às minhas possessões onde viviam alguns clérigos e trabalhadores. Ali estava construída a Grande Catedral, comandada pelo misterioso bispo Gualverianos e suas curas milagrosas.

 

         Meu mundo era um mundo dentro do mundo.

      Era o tempo dos nevoeiros. Nesse período, muitos conflitos ocorreram devido ao meu sucesso e ao meu crescimento repentino, os quais despertaram em muitos a ira, a cobiça e a inveja. Não foram poucos os exércitos de cidades vizinhas que tentaram me destruir. Havia fúria por todos os lados e eu ajudei conforme podia, usando das artimanhas que havia aprendido. Era como se eu tivesse braços e mãos balançando as raízes de minha própria natureza enjaulada. Lembro-me do dia em que abri no chão um gigantesco clarão onde caíram os combatentes de Drakzomar. Ou do dia em que ajudei meus cavaleiros a vencerem uma batalha quando fiz um movimento de rochas parecer um terremoto que neutralizou os guerreiros de Maheklorf. Ou ainda de quando fiz uma de minhas florestas parecer infinita, embaralhando os planos e fazendo com que houvesse a rendição dos exércitos de Zorhenmard. Esses foram tempos de glória e vitórias que elevaram a minha fama de cidade mais invencível do mundo.

 

        Uma década se passou.

 

    Era o tempo das tempestades. Foi nesse momento que surgiu o meu maior e mais poderoso inimigo: Alfred IV de Bravuantiria, o poderoso duque que queria me reconquistar. Explico: Otthar era vassalo de Alfred e havia entre eles um compromisso de fidelidade e lealdade assinado há tempos em uma prestigiosa Cerimônia de Investidura e Homenagem. Sendo assim, o condado de Akriemas, onde eu, Arcanjópolis, estava localizada como capital, fazia parte dos domínios feudais do Ducado de Bravuantiria, governado pelo poderoso duque Alfred IV. Na verdade, meu crescimento havia sido realizado à revelia dos interesses do duque e agora eu estava atrapalhando seus planos de controle de todas as rotas de ferro que passavam pelo ducado, o que o enfraquecia econômica e politicamente. O duque queria suas terras de volta. Para isso, mandou dezenas de cartas exigindo explicações e o cumprimento da lealdade outrora assumida. Exigia o repasse das tributações e dos impostos que o conde insistia em não fazer. Inspetores fiscais, nobres e até o bispo ducal, Gregor von Aulsthein, vieram em missões especiais, mas foram devidamente ignorados. Ameaças de sanções comerciais, bloqueio de rotas mercantis, invasão e retomada do território foram determinadas pelo duque, mas desdenhadas pelo conde. As tensões aumentavam dia após dia. Otthar tinha outros planos e até já se falava em soberania e autonomia perante o império. Tínhamos um futuro majestoso à nossa frente.

 

         Alguns meses se passaram.

    Era o tempo dos furacões. O duque e o imperador se uniram. Prometeram guerra. Marcaram uma data. Foi então que, em um dia nublado, a horda ducal, apoiada pelas tropas imperiais, cercou-me com centenas de catapultas, de aríetes e de mais de 6 mil combatentes. Do nosso lado, quase 2 mil guerreiros espalhavam-se por minhas cercanias e eu estava pronta para usar de minhas artimanhas. O conde Otthar colocou sua linda armadura dourada e deu ordens aos homens para que ficassem em seus postos. Nós estávamos preparados para mais uma vitória. Era o início de minha guerra particular, o início daquela que seria a nossa maior vitória, da batalha que todos lembrariam, da Batalha de Arcanjópolis.

 

        Algumas horas se passaram

 

     Era o tempo da decomposição. Havia um silêncio impactante. Ninguém se mexia nos campos. O duque não avançava e isso demorou por algumas horas. Até que uma pequena diligência, puxada por dois cavalos, aproximou-se de nossos muros. Para minha surpresa, o inimigo trouxe algo a mais: um homem, um poderoso feiticeiro, que veio à frente dos combatentes, no alto daquela carruagem. Esse homem era chamado de Duvk-Kondvonnar e morava nas distantes regiões das Névoas de Tharivonis, ao lado das terras feudais e do imponente castelo ducal. Com um vestido longo e preto, Kondvonnar abriu os braços e ressoou uma cantiga mágica. Foi como um raio me atingindo de todos os lados. Eu não conseguia mais me mexer nem fazer com que as rochas, as árvores e as águas de minhas possessões agissem ao nosso favor. Eu estava presa. Junto a isso, soubemos que integrantes da nossa nobreza, junto aos marqueses e a uma parte da elite mercantil, traíram-nos e aliaram-se aos interesses imperiais, retirando-se horas antes através de passagens secretas. Isso fez com que parte de nossas tropas mercenárias abandonassem seus postos. Ao mesmo tempo, as principais estradas e rotas comerciais tinham sido, desde a noite anterior, bloqueadas por ordens do duque. Logo faltariam alimentos e mantimentos. Foi nesse momento que os cavaleiros imperais avançaram. Destruíram os muros, atirando pedras, toras e projéteis incendiários para dentro de mim. A destruição colocou abaixo todos os meus mais importantes e bonitos prédios. A matança, que foi cruel e generalizada, não poupou mulheres e muito menos crianças. Eu nada conseguia fazer e vi angustiada a minha própria destruição. Otthar resistiu com nossos últimos guerreiros. No fim, sozinho em cima de seu cavalo, meu corajoso conde correu em direção à morte indo de encontro à hoste inimiga.

 

         Anoiteceu.

        Era o tempo da renovação. Eu pegava fogo e as labaredas enormes continuaram doendo e ardendo por dias e noites. A destruição perpetuou-se depois que a legião imperial deixou o local. Os corpos mortos não foram enterrados e permaneceram apodrecendo a céu aberto como uma forma grotesca de punição e lembrete. Além disso, ladrões e oportunistas acabaram de arrancar meus últimos pedaços através da sucessiva onda de pilhagem e roubo que durou por várias estações. Eu era novamente ruínas e destroços. Era apenas a lembrança da força bruta daqueles homens, do eco de suas eternas maldades. Eu permanecia no chão do mundo, nas profundezas da terra, viva, esperando até que outro anjo aparecesse e fincasse uma espada em meu coração. Eu adormeci.

 

        Era o tempo da espera.

TEMPO HISTÓRICO: IDADE MÉDIA 

ESPAÇO GEOGRÁFICO: EUROPA

DATA DE PUBLICAÇÃO: 28/09/2025

AUTOR: FABIO GOHMEIZ 

REVISÃO:  CIAENTRELINHAS

ILUSTRAÇÃO: WIX / COPILOT

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