ENLACE DAS MULTIVIDAS

1848
Era primavera de 1848.
Théony e Marguerite amavam-se pelos campos de uma província qualquer nas cercanias da cidade francesa de Picardia. Paolo dormia encostado em uma parede de um velho prédio em ruínas de uma cidade perto do Ducado de Toscana, um dos estados italianos. Maximilian cortava troncos na pobre propriedade de seus tios, lá pelo interior do Império Austríaco. Alberto tentava colher frutos pendurado no galho de uma árvore nos arredores de um vilarejo no Grão-Ducado de Baden, na Confederação Germânica.
Théony e Marguerite estavam desempregados e viviam de trabalhos informais, mendicância, caridade e às vezes até da criminalidade. Deixaram o namoro de lado quando viram uma certa luminosidade emergir pelas gramas campestres. Paolo trabalhava em uma fábrica de produção de trilhos para ferrovias quase 16 horas por dia, 6 dias por semana. Deitou-se na rua de tão cansado que estava depois que soube que havia sido demitido. Sentiu um tremor perto de sua cabeça e levantou assustado. Maximilian estava com suas mãos queimadas de tanto cortar troncos para vender na cidade para sustentar seus tios, que passavam fome. Ao cortar mais um tronco, percebeu uma luz brilhando perto de uma árvore ao longe. Alberto labutava em uma mina de carvão que fornecia combustível para máquinas a vapor. Foi colher as frutas quando voltava de um dia cansativo de trabalho, pois não tinha nada para comer em sua casa. Caiu da árvore ao sentir um abalo debaixo de seus pés.
Théony era casado com Clémence e tinha várias amantes, além de sete filhos – conhecidos. Marguerite tinha seis filhos, fumava muito, era viúva de um tal de Pierre e também tinha vários amantes. Todos viviam perambulando pelas ruas das cidades francesas. O ideal de vida deles era lutar para sobreviver. Naquele dia, em especial, Théony e Marguerite se encontraram nos campos, até que, alarmados, decidiram investigar o bonito portal, quimérico e verde-esmeralda, que se materializou. Paolo tinha mulher e cinco filhos. Não sabia como iria contar a eles sobre sua demissão. Ele era um nacionalista convicto e acreditava que a única solução para a sua miséria seria a unificação dos reinos italianos. Antes de ir para casa, levantou-se da rua onde dormia e se assustou quando viu um mosquete iluminado, coberto de diamantes e carregado de balas chumbo, emergir do chão ao seu lado. Maximilian era órfão, teve uma vida regressa cheia de confusões, desentendimentos e caos. Agora, sustentava a pequena propriedade dos tios doentes. Era um fervoroso liberal, criticava tanto o imperador Ferdinando I quanto seu conselheiro Metternich, exigindo reformas políticas e melhores condições de vida no campo. Curioso, foi até a luz e se deparou, espantado, com uma imensa espada prateada flutuante. Alberto era um mineiro. Tinha mulher e três filhos, mas perdeu sua família violentada e assassinada por um bando de ladrões. Entregou-se à vagabundagem por meses, vagando por lugares distantes atrás de bebida, meretrizes e fumo. Ao voltar a si, resolveu adentrar ao sindicato dos mineiros e teve acesso às obras socialistas. Agora, criticava o rei Frederico Guilherme IV, acreditando em uma sociedade mais justa. Quando se levantou do tombo, observou uma deslumbrante pistola áurea, carregada, sair de dentro da árvore.
Théony e Marguerite, os miseráveis, entraram felizes e contentes pelo portal verde-esmeralda, viajaram por dimensões aleatórias e estranhas e viveram, por momentos inenarravelmente plenos, uma vida de riqueza e amor puro. Paolo, o nacionalista, pegou seu mosquete iluminado de diamantes, mas não se juntou às fileiras dos exércitos italianos. Ao invés disso, tentou alugar sua preciosa arma na primeira loja de penhores que encontrou. Maximilian, o liberal, empunhou sua espada prateada e encantada, mas não foi para a cidade lutar por melhores condições de vida; foi tentar trocá-la por sacas de feijão e arroz nas fazendas do entorno. Alberto, o socialista, sacou sua pistola de ouro deslumbrante e, em vez de apoiar os revolucionários, tentou se vingar daqueles ladrões que vandalizaram sua família.
Enquanto a Europa continuava vivendo sua primavera e os variados povos se revoltavam contra a tirania dos governos absolutistas e da nobreza, nossos heróis concluíram a sua derradeira aventura.
Por fim, aconteceu o seguinte: Théony e Marguerite, dentro do portal mágico, voaram ingenuamente para o interior de um espaço escuro, sem luz, largaram as mãos e se perderam. Théony tentou sair daquele acesso cósmico e, do nada, apareceu perante Alberto, que lhe deu um tiro mortal pensando que fosse um daqueles covardes. Alberto, com receio, resolveu entrar na fenda de outra dimensão.
Dilatações energéticas.
Marguerite, procurando o amante, apareceu ao lado de Paolo, que estava em uma loja de penhores. Ela viu o mosquete iluminado e, no impulso, pegou para si a arma e voltou correndo para dentro da passagem interdimensional. Paolo a seguiu, desesperado com o roubo, e vagou por espaços tórridos, mas não a encontrou – “aquela ratta di fogna”, disse ele. Inconformado, o italiano pulou, esticando a perna por quilômetros para fora daquele vórtice místico. Do nada, apareceu na Áustria.
Dilatações espaciais.
Paolo deu de cara com Maximilian, que voltava para sua fazenda carregado de sacos de arroz e feijão. O fazendeiro austríaco trazia consigo a sua espada, pois, na agonia da fome, desistiu de trocar e decidiu roubar os agricultores dos arredores. Assustado e pensando se tratar de um dos seus vizinhos, ele jogou a espada. O objeto afiado voou devagar, rodopiando, girando, e tudo nesse momento pareceu como uma cena em câmara lenta. A arma estripou Paolo por todos os lados em um segundo que durou 100 anos. O pobre rapaz italiano desintegrou-se em partes subatômicas.
Dilatações temporais.
Alberto viu toda aquela cena de dentro do portal e observou com atenção. O germânico deu um suspiro profundo, aqueles de alma envenenada, colocou apenas um dos braços para fora, apontou a pistola e deu dois tiros que acertaram em cheio a testa de Maximilian, que caiu morto. O mineiro acabara de projetar sua mente no passado e descobrir um dos malditos assassinos de sua família. Depois, ele esticou o braço bem longe e pegou as sacas de feijão e arroz e a espada, voltando para dentro do espaço dimensional.
Dilatações gravitacionais.
Marguerite, flutuando desordenada por ondas escatológicas, esbarrou em Alberto. Os dois se reconheceram! A moça tinha sido uma das meretrizes dele na época de sua crise existencial. Apavorada, a francesa apontou o mosquete e atirou. Uma. Duas. Três vezes. Uma das balas pegou de raspão no braço de Alberto, que cambaleou para o lado e acabou caindo centenas de metros para cima, sendo expurgado para fora do portal. Depois, surgiu em uma espécie de savana, junto da espada, da pistola, das sacas de arroz e feijão. Por azar, aquela região era um território selvagem repleto de leões gigantes e famintos, que o devoraram rapidamente.
Marguerite, com a cabeça do tamanho de um sol, riu.
A moça continuou sua busca por Théony, vagando indelével por espaços abissais, no reino das estrelas, indistintamente, por quase toda a eternidade. Quando resolveu voltar definitivamente à Europa do seu tempo, viu uma aparente mesmice do mundo. A pobreza ainda estava lá, as desigualdades permaneciam as mesmas e os reis ainda continuavam governando os diversos países do continente.
Era outono de 1850.
TEMPO HISTÓRICO: IDADE CONTEMPORÂNEA 1
ESPAÇO GEOGRÁFICO: EUROPA
DATA DE PUBLICAÇÃO: 28/09/2025
AUTOR: FABIO GOHMEIZ
REVISÃO: CIAENTRELINHAS
ILUSTRAÇÃO: WIX / COPILOT