A BATALHA DE POITIERS
DIMENSÃO DESCORTINADA

732 d. C.
QazsIim, um velho combatente, levantou-se do chão com certa dificuldade. Tinha o braço dormente, a perna ferida e as pálpebras inchadas. O confronto que acabara de ter com o inimigo foi não apenas selvagem, como também demorado, mas triunfante. Aos poucos, com seus sentidos voltando ao normal, percebeu que estava chovendo água misturada com sangue. Essa estranha precipitação mais parecia um oceano vermelho na vertical.
Algo estava diferente. Olhos flutuantes o observavam.
O experiente guerreiro procurou sua espada, trabalhada em ouro e aço, mas não a encontrou. Olhou ao redor e viu apenas restos espalhados, amontoados e despedaçados. Assustou-se ao perceber centenas de cabeças degoladas voadoras, rindo e chorando, vagando absortas pelo espaço.
As imagens passavam mais rápido agora.
QazsIim andou à procura de algum apetrecho que pudesse usar para se proteger e decidiu subir em um pequeno monte. De lá de cima avistou centenas, talvez milhares, de pessoas berrando e gritando, correndo e planando, aparecendo e sumindo.
Elas estavam vivas ou mortas? Ele não sabia.
A cena que QazsIim viu era nefasta. Naquele campo destronado, além das formas vivas mutiladas, ele contemplou uma realidade intangível com aparições bizarras. Eram envoltórios incorpóreos misturados uns aos outros. Eram cabeças etéreas atravessadas por corações espatifados, troncos despedaçados transpondo torsos lacerados, olhos girantes projetados em orelhas cabeludas, narizes catarrentos entupidos de dedos saltitantes, bocas de cem dentes misturadas com pés encardidos, braços fraturados saindo de barrigas lombriguentas, costelas cruzadas por dentro de pulmões, ventres devorados por bocas vampirescas.
Havia espíritos desintegrados que dançavam em cima das cabeças dos guerreiros vivos. Espectros desordenados que entrecortavam dermes derretidas, que agarravam genitálias decaídas e cruzavam peitos explodidos, de modo que centenas de entidades se atravessavam em vertical, em uma forma enviesada, transformando-se, assim, em uma horrenda aberração ambulante com aspecto de cruz. Simultaneamente, esses seres fantasmagóricos, deformados e anômalos xingavam e troçavam. Havia um cheiro errático vindo de todos os lugares e um zumbido de loucura incurável tão alto que fazia trincar os dentes.
O limiar parecia mais escuro do que antes. QazsIim desviou o olhar em direção ao horizonte distante e observou a silhueta preta do comandante Abderramão levantando sua cimitarra e dando ordens para seus homens avançarem. Foi a última vez que viu o líder muçulmano, que desapareceu diante da torrente linfática.
Troncos planavam sem seus membros, mãos apareciam e desapareciam em pleno ar. Um braço translúcido atravessou o ventre de QazsIim e sumiu. Ele ouviu uma gargalhada. As vozes aumentavam em sua cabeça. Eram muitas, desconexas e em vários idiomas que ele desconhecia. Aquela agonia tinha um tipo de gosma esbranquiçada e pegajosa que escorria por gotas e trazia o fedor do mal.
O chão tremia e o barulho aumentava. QazsIim correu para longe daquilo e resolveu pegar uma lança de 6 m que estava no chão quando sentiu uma forte dor perto da barriga. Era uma flecha que tinha acabado de lhe atravessar. A dor era imensa e ele deu um grito assustador. Chorava e lamentava. Levantou seus braços ao firmamento e pediu ajuda ao seu Deus.
De relance, viu um homem magro e alto vindo ao seu encontro com um arco e flecha. Era Tariq, seu melhor amigo e companheiro entre os combatentes. Sentiu alento quando viu alguém conhecido. Tariq chegou mais perto. Atirou uma segunda flecha, agora na testa, e uma terceira na direção do coração.
Um puxão fez QazsIim tremer. Logo, sua alma foi sugada do seu corpo material. Em pé, ainda atordoado, o guerreiro viu seu amigo vasculhando seus pertences e sua roupa. Tariq puxou de dentro do casaco do velho amigo a pequena e preciosa adaga katar, banhada a ouro e repleta de diamantes e pedras preciosas.
Nesse momento, vultos humanoides apareceram de todas as direções. Eles faziam galhofa da situação, balançando suas partes íntimas, entortando suas cabeças repletas de chifres, virando suas vistas pontilhadas de sujeiras, avançando suas vontades tortas misturadas às suas energias quebradiças.
Enquanto isso, Tariq, emocionado, empunhou a adaga katar. A imponente faca brilhou e o jovem pensou que ela finalmente voltaria para a casa de sua família, descansando junto aos restos mortais de seus antepassados. Tariq foi se afastando, não sem antes cuspir no cadáver de seu amigo e xingá-lo.
O escuro tomou conta da vista de QazsIim e ele não sabia mais diferenciar o que era vida e o que era morte. Sua forma material desapareceu fustigada por garras predatórias, enquanto seu legado espiritual findava perdido diante de um éter inescapável.
A noite admirou aqueles guerreiros vencedores que, cantando e dançando, brindavam a vitória.
TEMPO HISTÓRICO: IDADE MÉDIA
ESPAÇO GEOGRÁFICO: REINO FRANCO
DATA DE PUBLICAÇÃO: 28/09/2025
AUTOR: FABIO GOHMEIZ
REVISÃO: CIAENTRELINHAS
ILUSTRAÇÃO: WIX / COPILOT
