HORROR NO PORTO DE BOSTON

1773
Dia 24 de dezembro de 1773: sem registros.
Dia 23 de dezembro de 1773: sem registros.
Dia 22 de dezembro de 1773: minha vida se tornou um inferno! A tragédia não tem fim! De manhã, fui até a rua para ver se encontrava mais alguém, mas a cidade permanecia deserta. Os moradores estão evitando sair de suas casas. Estão com medo da chuva escura e dessas criaturas que essa chuva trouxe. Horrendas! Bestas dos infernos! Um desses seres demoníacos me perseguiu quando tentei sem sucesso chegar às docas. Tentei voltar e vi de longe William ser esmagado por um desses terríveis monstros. Por Deus! Corri desesperado e entrei em um galpão abandonado. Quando vi estava cercado pelos monstros. Eram enormes, de uma cor verde-escura com um tom brilhante, ovais e alongados com bordas serrilhadas, bem parecidos com folhas de chá. Não tinham olhos, nem mãos, nem braços, nem pernas como nós, filhos de Deus, temos. Tinham apenas pequenas folhas alongadas de chá que substituíam esses membros humanos de forma eficaz. Arrastavam-se pelo chão usando a ponta de suas próprias folhas e faziam um barulho parecido com o de uma serra rasgando madeira. Rezei a Deus nesse momento. Fiquei em silêncio. Por misericórdia de Deus, essas aberrações demoníacas não me viram e foram embora. Esperei um momento e saí correndo em direção à minha casa. No caminho, vi a cidade sombreada, alagada e silenciosa. O entorno do Porto de Boston completamente vazio e afônico. Há prédios ainda sujos, galpões alagados e barcos virados de cabeça para baixo no cais. A tempestade com aquela gosma escura diminuiu e os gigantes parecem que a cada momento aumentam de tamanho e força. No caminho, me encontrei com os membros da fraternidade, que me olharam com ar de reprovação. Me juraram de morte e correram! Abaixei a cabeça, envergonhado! Cheguei em casa a salvo. Escrevo este texto com medo de ser o último. Peço desculpas pelo que fiz. Rezo a Deus para que o mar volte a ser azul novamente, para que não chova mais chá e para que essas criaturas infernais sumam de vez! Não sei o que vai acontecer amanhã. Não sei como será o nosso Natal.
Dia 21 de dezembro de 1773: algo inacreditável acontece aqui! Ontem e hoje uma nova e estranha tempestade, a mais forte até agora, caiu sobre toda a região do Porto de Boston. Essa chuva ora tem cor marrom avermelhada com gosto amargo, ora tem cor escura com gosto terroso, e às vezes ainda tem cor amarelo-pálido com gosto doce. Ninguém entende ou consegue compreender. Apenas eu sei o que aconteceu de fato. E de quem é a culpa. Por Deus! A tragédia é total e devastadora. Várias casas sofreram avarias e desabaram por causa da força das tempestades, que acabam sendo mais poderosas devido à força descomunal das gotas, mais viscosas e encorpadas. A residência de Sarah desabou às 18 horas de ontem e ninguém sabe quem estava dentro do prédio. Não consigo ter notícias de Sarah. Por Deus! Informantes disseram que várias fazendas estão alagadas e que há muitas mortes nas áreas rurais. A Oeste, na propriedade dos Aldridges, nas fazendas dos Pennington e mais além, todos parecem estar incomunicáveis. Também a Leste, nas fazendas do senhor Ephraim Hollingsworth e da senhora Hester Hollingsworth. Disseram que a fazenda Cartwright em Roxbury era uma das que estavam às escuras e alagadas. Por Deus! As estradas estão fechadas e eu não consigo ir até lá ver o que aconteceu com minha querida Charity e com meus amados filhos. Peço a Deus misericórdia e que conserve a vida de minha família em troca da minha! Tenho medo! Agora já está noite e a chuva, grotesca, ainda continua.
Dia 20 de dezembro de 1773: sem registros.
Dia 19 de dezembro de 1773: sem registros.
Dia 18 de dezembro de 1773: a madrugada de ontem para hoje foi muito agitada. Eu pouco dormi. Um mar cheio de chá! Inacreditável! Discuti com Charity, pois ela não aceitava o modo como eu tinha conseguido todo aquele dinheiro. De manhã, Charity resolveu ir para a casa dos pais, Jemima e Theophilus Cartwright, na fazenda em Roxbury. Mesmo contrariada, ela levou todo o dinheiro. Seria melhor mesmo que ficasse com ela o montante. Não fui ao trabalho, pois o porto estava fechado. Tenho medo! Angústia! Acho que não deveria ter usado toda aquela magia. A tragédia parece que só aumenta entre nós. No fim da manhã, Sarah, linda com seus cabelos lisos e grandiosos, jovem e meiga, com sua pele clara, seus olhos azuis, veio ter comigo. Nos encontramos e nos amamos na estrebaria. Depois, Sarah me indagou sobre Julius. Falou que estava preocupada com o rapaz, pois ele havia sumido. Disse que ele contou para ela sobre minha traição, mas ela não acreditou. Achava que fosse ciúmes de Julius. Eu neguei tudo e jurei que nada fiz de errado! De tarde, deixei Sarah em sua casa na Water Street e fui até Bunch of Grapes. Lá, três membros de nossa fraternidade, cujos nomes não lembro agora, estavam alarmados, pois, além do sumiço de Julius, outros integrantes haviam desaparecido, dentre eles, meu amigo Thomas. Por Deus! Thomas, o mais corajoso dentre nós, desde criança, quando brincávamos na estrebaria e ele sempre era o primeiro a enfrentar os desafios. Me perdoe, meu amigo Thomas! Se eu pudesse voltar atrás! Disseram os homens que Thomas liderou um grupo que tentou entrar no mar viscoso escuro... o “mar de chá”. Não demorou para que o barco fosse sugado para o fundo, por um tipo de mão coberta por folhas de chá, e depois sumiu. Quando soube do acontecido, saí correndo da taverna sem dar muitas explicações. Era tudo culpa minha! Por Deus! À noite, em casa, chorei muito, mas também ouvi berros ao longe. Uma estranha chuva começou a cair em Boston.
Dia 17 de dezembro de 1773: de manhã, Julius veio ter comigo na minha casa. Fomos até a parte de dentro da estrebaria. Lá, Julius gritou “— Phil, seu traidor!” e tirou uma faca de dentro do casaco. Depois, disse que tinha me seguido, ontem à noite, e visto tudo o eu que tinha feito. Eu neguei e disse que era invenção dele. Julius disse que eu merecia morrer por ser um traidor da causa da liberdade, por ser uma pessoa ruim, por ter tirado Sarah dele. Julius veio em minha direção com a faca e nós dois caímos no chão da estrebaria. Lutamos ferozmente. No fim, consegui dominá-lo com um golpe e o joguei no chão. Julius caiu por cima de sua faca, que ficou cravada em seu coração. Julius morreu no chão da estrebaria. Eu não acreditei no que havia acontecido, mas, com medo, precisei agir rapidamente. Se alguém um dia ler estas anotações, saiba que naquela manhã, sem que ninguém na casa visse, eu peguei com cuidado a carcaça de Julius e o deixei dentro de um poço abandonado que há na parte de trás da estrebaria. Cobri tudo com sacas velhas de chá. Julius morreu, mas eu não tive culpa. Perdoem-me! Naquele fim da manhã, depois de tudo que fiz, fiquei absorto deitado no chão da estrebaria. Não acreditava no que havia feito. Acho que dormi e, quando acordei, já era de tarde. Corri até a Bunch of Grapes. A cerveja foi minha companheira naquele momento de tragédia e horror. Eu, Philip Berrycloth, Traidor? Assassino? No entardecer, quando um sol, parco, murcho, ainda brilhava, calmo, no poente, decidi sair da taberna e vi um alvoroço de pessoas indo em direção ao cais. Logo algumas crianças passaram correndo pelas ruas gritando que o mar havia escurecido. Eu fui lá ver e, para minha surpresa e a de todos, as águas que circundavam o Porto de Boston estavam pretas em toda a sua extensão até o horizonte. Alguém teve a coragem de colocar a mão e experimentar: era chá!
Dia 16 de dezembro de 1773: deu tudo certo! Que nosso bom Deus tenha misericórdia de nossas ações! Tudo saiu como planejado. O trabalho durante o dia foi normal e tranquilo. À noite, junto a meus amigos e minha querida família, minha Charity e meus amados filhos, nos encontramos na igreja. A Old South Meeting House estava lotada e foi então que eu percebi que não haveria mais retorno. Um pouco antes da missa começar, no jardim perto da entrada, nosso grupo se reuniu em separado. Nosso líder, Saruel, estava dando as ordens de como iríamos iniciar a revolta. Porém, sem que ninguém visse, eu saí sorrateiramente da igreja e fui em direção ao cais. Adentrei a embarcação que iria ser usada na revolta e abri as caixas com a numeração correta. Distribuí os pacotes de chá de Liang pelas caixas e fechei todas elas. Voltei para a igreja no momento em que estavam acontecendo as últimas orações. Logo depois, saímos eu, Sarah, Thomas e William e mais ou menos uns 100 homens para buscar as roupas de índios que iríamos usar no ataque. Estávamos felizes. Cantávamos como nas cantigas da infância. Em seguida, já vestidos de índios, fomos ao ataque e ele foi um sucesso. Corremos em direção ao cais e invadimos três embarcações da John Company, ou Companhia Britânica das Índias Orientais, como eles gostam de falar. De dentro dos barcos jogamos dezenas de caixas de chá no mar, incluindo aquelas que eu havia, secretamente, alterado. A revolta foi triunfante e a minha empreitada também.
Dia 15 de dezembro de 1773: sem registros.
Dia 14 de dezembro de 1773: logo de manhã fui até o distrito de Dorchester na fazenda de uma tal senhora Mercy. Lá, entreguei as sacas de pele e tabaco, parte do papel moeda e, em troca, recebi o pacote de Liang. A senhora Mercy, sem que eu perguntasse, me contou que esses pacotes de chá eram raros e especiais, que foram feitos por um feiticeiro chinês muito poderoso chamado Liang e que eu deveria ter cuidado ao usá-los. Ela, intrometida, me perguntou o porquê de estar participando daquela traição junto aos ingleses. Sem querer, respondi que era por conta das riquezas que iria receber, o que ajudaria a mim e a minha família a melhorarmos de vida. Mais tarde, fui até King Street beber uma cerveja na Bunch of Grapes Tavern. Por Deus! Eu não parava de pensar que seria um traidor! À noite, a reunião na taberna foi cheia de gritos e berros. Cheguei em casa há pouco, acho que estou ainda bêbado. Guardei o pacote de Liang atrás do armário da estrebaria, bem longe, fora do alcance de minha família. Sabe lá Deus o que essa magia pode fazer! Que Deus me dê coragem!
Dia 13 de dezembro de 1773: na parte da manhã, depois dos trabalhos na doca, repassei todo o plano. De tarde, dentro de uma embarcação inglesa nas docas, encontrei secretamente com um homem, um agente da John Company chamado Zadock Whittemore – pelo menos foi assim que o sujeito se identificou. Trocamos os envelopes com meu pagamento em papel moeda, o número das caixas de chá que iriam ser abertas e o endereço onde eu iria conseguir os pacotes de Liang. À noite, lotamos o Dragão Verde! Nossa reunião foi um sucesso. Antes de sair da taberna, ainda fui indagado por Julius se realmente iria continuar com aqueles meus planos! Eu, duvidoso, desconversei e fingi que não havia entendido. Julius xingou algo que não entendi e jurou vingança. Eu, Sarah, Thomas e William saímos de lá cantando. Estão todos animados com o plano de ataque. E eu estou agoniado com o que vou fazer! Tenho muitas dúvidas! Será realmente que estou pronto? Que Deus me perdoe!
Dia 12 de dezembro de 1773: amanhã vamos todos ao Dragão Verde!
TEMPO HISTÓRICO: IDADE MODERNA
ESPAÇO GEOGRÁFICO: AMÉRICA DO NORTE
DATA DE PUBLICAÇÃO: 28/09/2025
AUTOR: FABIO GOHMEIZ
REVISÃO: CIAENTRELINHAS
ILUSTRAÇÃO: WIX / COPILOT
