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A DAMA INVISÍVEL DO TABULEIRO

A DAMA INVISIVEL DO TABULEIRO

1687

            Tempo chuvoso. Céu escuro e nublado. Um frágil contraste entre o cinza e o branco. Por detrás das montanhas, uma nuance de trovões e relâmpagos, um tom rosado com lilás. Para além, o vento. Uma melodia arcaica. A floresta em um matiz enegrecido parecia um coração borrado de preto com pulsações de um sangue eletrostático. A ponte, ao longe, era apenas um detalhe que se confundia com a coloração da terra. Um rio passava por baixo em um azul apagado. Havia uma mulher sobre a ponte. Seu cabelo, paralisado, esboçava-se por um toque de medo e solidão. A pintura fulgia na parede da torre do castelo.

   

            Velas acesas...

       Na verdade, eu não estava exatamente no castelo. A hospedaria era um gigantesco prédio com dezenas de quartos, salões e quatro potentes guaritas espalhadas pelos seus cantos. O entorno era rodeado por dois grandes jardins repletos de macieiras, pereiras e cerejeiras, além de um lago artificial de cor verde. Esse lugar ficava no interior de um distrito francês cuja exatidão, por contrato, eu não podia revelar.

 

           Velas libertas...

 

        O toque de um sino. Uma igreja distante. Aquele som me deu a certeza de que era o momento de agir. Eu sabia o que deveria fazer. Rasguei-me. Deixei a pintura morrer em mim. Desci as escadas com mãos carregadas de uma cor bruta e intolerável. Lembrei da Sra. Antoinette, de sua alma doce, de todo o seu sofrimento antes do final. Cheguei ao térreo e fui ao salão principal. Os convidados daquela reunião singular se encontravam já sentados em seus lugares. Todos bem-arrumados. Um dos homens usava um colete cinza parecido com aquele que Sr. Gaspard usava no dia de sua fatalidade. Absorta eu revi os planos passo a passo antes de entrar na cozinha para admirar o preparo das comidas.

 

            Velas vencidas...

       Conversas acaloradas misturavam-se a sons monossilábicos. Sobre uma das mesas estava debruçado Nicolau ao lado de Galileu discutindo os avanços das suas teorias sobre as esferas celestes e a centralidade do sol. Um jovem chamado Johannes, bebendo uma caneca de vinho, um pouco mais afastado, observava-os com admiração, mas duvidando da circularidade daqueles orbes. No balcão das comidas estavam René e Blaise divertindo-se, bebendo cerveja em uma discussão sobre teoremas, Filosofia e Geometria.

 

            Velas amando...

 

        Eu andava pelas mesas sem ser notada. Contornava os pratos e seguia os servos na distribuição do jantar. Criados passavam por mim, sem nada dizer, para encher as canecas dos festeiros mais animados e, nesse momento, me dei conta de que aquele tinha sido o trabalho de Sra. Antoinette, uma serva de famílias ricas, por toda a sua vida. Que triste! Eu não estava mais lá quando ela adoeceu.

 

             — Joséphine!

         Ouvi meu nome. Alguém me viu? Logo em seguida, cruzei uma bancada de canto, ao lado da biblioteca, e vi que lá estavam Halley com um pequeno telescópio na mão e Leeuwenhoek com seu pequeno microscópio, um tentando explicar ao outro as funcionalidades de seu invento. Perto do salão de espelhos, Guericke e Gray discutiam as curiosas propriedades das cargas elétricas e riam. Ao lado da escadaria, fumando e cantando, estavam Boyle, Huygens e Hooke, que não se entendiam no debate sobre Química, ondas e eletricidade.

 

           Velas dançando...

 

        Um dos mordomos encaminhou-se a trocar os candelabros e lustres do salão principal que estavam adormecendo. Lembrei que Sr. Gaspard sempre dizia que seu ofício, acendedor de lanternas e lampiões, era o mais importante de todos. Ele tinha orgulho da sua profissão. Só não teve prazer ao encontrar a filha mais velha no mesmo bordel que há muito frequentava. Um riso feminino me chamou atenção. Sim, também havia mulheres nessa conferência: Cavendish, Sibylla e Châtelet estavam bem à vontade. Fumavam e debatiam seus estudos em uma mesa mais isolada, repleta de fumaça e penumbra, enquanto comiam volumosos pedaços de bolo. Era nelas que eu deveria me concentrar. Elas eram meu objetivo principal.

 

         Velas agitadas...

 

       Estava quase na hora de agir. Deveria fazê-lo. Em instantes eu deveria proferir as palavras mágicas para parar o tempo. Esse era o plano, mas bem na hora um homem de mais ou menos 1,68 m de altura, magro, com cabelos longos e ondulados de cor branca tendendo ao grisalho entrou no salão. Era Newton, que estava atrasado e chagava na reunião completamente ensopado devido à chuva. Nesse momento, todos foram cumprimentá-lo. Trazia um livro em suas mãos: Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica. Foi a deixa para que eu agisse. Lancei o feitiço.

           Velas paradas...

     A cena era inusitada. Todos estavam em volta de Newton para ajudá-lo. Eruditos visionários parados, indeléveis, como formas vivas da evolução da mente e da razão humana. Parei ao lado deles, admirando-os. Talvez não fosse certo fazer o que eu deveria fazer. Era uma traição da humanidade. Por um instante pensei que, se eu soubesse dessa magia antes, poderia ter impedido o Sr. Gaspard de ter encerrado sua jornada ou mesmo a evolução da doença que levou a vida da Sra. Antoinette. Dessa forma, eles estariam vivos, talvez, em algum tempo, ainda cuidando de mim. Oras, mas já não havia como voltar atrás! Afinal, eu estava sendo bem-paga.

 

          Velas agoniadas...

 

        Lentamente peguei os escritos daquelas cientistas, embrulhei e coloquei por dentro de meu casaco. Segui em direção ao salão dos espelhos. Passei por serviçais e cavalheiros. Andei rápido em direção à porta principal do prédio. Antes de sair, lancei novamente o encantamento para desfazer a paralisia. Fui para o lado de fora. A trovoada diminuiu de força e se tornou apenas uma chuvinha. Atrás de mim eu ouvia o retornar dos zumbidos das conversas e dos alaridos das salas dentro da hospedaria. Esperei alguns minutos no jardim e uma carruagem com dois cavalos negros chegou na hora marcada. Tudo bem-cronometrado. A porta do coche se abriu. Entrei. Havia dois elementos mascarados sentados no banco oposto. Um deles acenou ao cocheiro. Os cavalos avançaram e partimos.

 

           Velas tristes...

 

       Da carruagem, a hospedaria ficava cada vez menor. De longe, enquanto me afastava, observei que aqueles eternos e grandes cientistas se retiravam do lugar da reunião, cada um ao seu modo: uns pegavam suas charretes no encalço das trilhas das diferentes estradas, outros preferiram entrar no etéreo vazio da sua morada celestial, alguns ainda decidiram apenas e tão somente desaparecer. Eu continuei o meu destino.

 

          Velas aprisionadas...

 

         O cocheiro andava a solavancos. A chuva do lado de fora continuava quando entreguei os escritos científicos para os seres encapuzados. Não houve conversa, apenas silêncio. O céu estava escuro e muito nublado no momento em que eles pagaram minha recompensa em uma sacola de couro. Havia no horizonte um frágil contraste entre o cinza e o branco. Posteriormente, a diligência levou-me a um ermo. Desci. Eles seguiram o caminho das trevas. Andei um pouco. Notei o medo que nunca se dissipa e parei. Por detrás das montanhas, pincelavam-se trovões e relâmpagos em um tom rosado com lilás. O vento traçava uma melodia arcaica. Ao redor, uma floresta negra tingia-me, enquanto meu coração destruído, borrado de preto, pulsava um sangue que parecia eletrostático. Eu estava em uma ponte da mesma cor da terra abaixo. Bordei em mim a culpa de tudo o que havia feito. Manchei-me nos traços de um pequeno rio. Mesclei-me com aquela água de tom azul apagado. Nesse momento, eu não tinha ninguém, não tinha para onde ir e não sabia voltar. Estava sozinha, paralisada, esboçada por um toque de medo e solidão.

TEMPO HISTÓRICO: IDADE MODERNA 

ESPAÇO GEOGRÁFICO: EUROPA

DATA DE PUBLICAÇÃO: 29/09/2025

AUTOR: FABIO GOHMEIZ 

REVISÃO:  CIAENTRELINHAS

ILUSTRAÇÃO: WIX / COPILOT

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