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O DOMINGO SANGRENTO

UM CASO EXTRASSENSORIAL

UM CASO EXTRASSENSORIAL

1905

          Lá estava Irina. Sentada na primeira fileira, de cabeça baixa e postura beatificada. Orava, trêmula, com seu terço na mão, solitária, em meio à audiência que acontecia naquele templo. Muito católica, ela, que já havia passado dos 50 anos, tinha estatura mediana, cabelos curtos, loiros e encaracolados, rodeados sempre por um lenço rosa de babados floridos. Frequentava com fervor e fé as missas de padre Gapon na Igreja de São Jorge. Mas Irina sempre se incomodava quando o sacerdote vinha com aquelas histórias de revolução e justiça social. Aquilo a perturbava sobremaneira, era um conflito dentro de sua mente, sobretudo porque tinha ciúmes de Nadezhda, Verushka e Yelina, outras religiosas mais jovens e atuantes junto ao padre que o ajudavam nos eventos sociais. Ela achava tudo aquilo desnecessário e acreditava que esmolas seriam o bastante e que, ademais, só Deus na sua misericórdia interviria para que houvesse a redenção dos desafortunados. Irina trabalhava como tecelã consertando roupas e era uma mulher solitária e sem família. Na verdade, havia um velho que vivia com ela, um tal de Oleh, um senhorio comunista que há muito não aparecia naquele minúsculo cômodo localizado em uma vila de casas pobres em um dos subúrbios de São Petersburgo.

            Um pouco distante, nas áreas rurais dos arredores de Kolpino, vivia Dmitry. Um homem grande e forte, de barba e cabelos ondulados e pontiagudos, que talvez tivesse lá pelos seus 60 e poucos anos. Ele vinha de uma família de muitos descendentes e tinha tios e irmãos em quase todos os cantos daquelas cidadelas do Noroeste da Rússia. Trabalhava capinando o gelo das ruas e das casas e era assim que ganhava o seu parco salário. Apesar de ter muitos familiares, ele resolveu, e ninguém até hoje sabe ao certo o motivo, viver uma vida quase eremita, isolado de tudo e de todos, odiando tudo e todos, morando em uma casinha perto do rio Izhora. Era uma vida simplória que aquele homem levava. Dizia que era ateu, mas guardava em segredo uma bíblia muito antiga banhada a ouro que seus avós lhe deram quando criança e que ele sempre folheava, emocionado, quando bebia uma jarra inteira de vodca.

 

                 Corpos entrecortados. Mentes conectadas.

                 Uma galáxia de medo se formou diante de nuvens de poeira e cristais. Uma explosão de sóis em uma massa cinzenta de dúvidas se juntou para formar um amálgama de estrelas e de conexões entre sinapses quânticas. Alterações cromossômicas, resultantes de mutações celulares celestiais, juntaram-se a pulsões elétricas dispersas em medulas celulares. Um olho viu o mesmo do outro. Os dois corações, perfurados por ferro e chumbo, agora batiam juntos em uma única carga sanguínea movimentando seus átrios, seus ventrículos, suas veias, tudo junto em uma mesma frequência. O vil e o mal em uma mesma vibração. Ardência e gozo. A luz projetou, nas camadas reticulares profundas, a destruição e a morte. Cones e bastonetes explodiram em imagens de um massacre banhado a tiros de espingarda. As vozes e os gritos silenciados eram apenas sentidos e perdidos em um eterno golfo preso nas estruturas de uma faringe pisoteada, esmagada e que cuspia um grosso refluxo misturado às tripas de uma regurgitação mortífera.

 

             O transe terminou. Irina acordou gritando, molhada de suor. Dmitry despertou e pulou da cama, sacudindo-se. Era madrugada de domingo do dia 9 de janeiro de 1905.

 

         Dmitry arrumou-se rápido. Saiu de casa sem tomar o café. Fumando intensamente e andando rápido, pegou a primeira carruagem que apareceu e foi em direção a Kolpino, em uma estação ferroviária. Irina, por sua vez, tremia assustada sentada em sua cama. Tomou um banho. Não foi à missa de padre Gapon naquele domingo e à manifestação organizada pelo religioso. Dmitry pegou o trem e, horas depois, desembarcou na estação de São Petersburgo. Foi depressa em direção ao local que ele desejava. Da janela de sua casa, Irina observou a marcha pacífica dos manifestantes. Viu Gapon, Nadezhda, Verushka, Yelina. Lá também estava o velho Oleh. Ela viu uma sombra e se assustou. Saiu da janela. Dmitry chegou ao seu destino, ofegante, com os braços projetados e erguidos. Irina deitou-se em sua cama, fechou os olhos.

 

       As tropas da Guarda Imperial apontaram suas armas. Atiraram. Dmitry agachou e agarrou-se a um corpo. Irina ouviu os tiros e colocou aquelas mãos grandes e frias em seus cabelos. Na praça, os manifestantes deterioravam-se diante do avanço da carnificina. Eram sons ardentes e arfantes em uma áurea alardeada por tropas famintas de sangue e vingança. Os minutos passavam. Correria. Confusão. O suor derramava das entranhas. O mesmo ar e o mesmo fluido. O sangue projetou, um espectro jorrou e atravessou as capilaridades de gelo. Na praça, morte e destruição. Dmitry caiu para o lado, estava ferido. Irina sentiu a dor dos tiros. Os dois morreram, cada um do seu jeito. O massacre terminou.

 

          O clima nas ruas era de tensão e caos. Nos arredores da praça houve correria, pânico e medo. Mortos misturavam-se a feridos, que eram levados para as casas e os hospitais mais próximos. Entretanto, na casa de Irina reinava o silêncio, e isso permaneceu até o entardecer, quando ela resolveu levantar. Foi fazer um café. Estava serena. Dmitry se levantou logo depois, satisfeito com o resultado de sua ação. Acendeu um cigarro. Arrumou-se sem tomar banho. Curtas trocas de palavras. Pequenos gestos de afeição. Não se beijaram. Dmitry despediu-se, saiu e bateu a porta. A fumaça e o cheiro do cigarro disseram o adeus. Irina foi até a janela. Viu um homem afastando-se como uma sombra, um borrão preto em uma tela branca, andando depressa em direção à estação. Viu transeuntes que passaram correndo. Ouviu rumores do massacre que acabara de ocorrer na praça do palácio. Soube da morte de padre Gapon e daquelas suas ajudantes, além de Oleh. Fechou a janela, sentindo-se aliviada e feliz. Nas ruas havia indignação, abalo e uma neve profunda. A mulher deitou-se novamente em sua cama com a certeza de que aquele homem iria voltar.

           

           Corpos anulados. Mentes interligadas.

 

        Irina e Dmitry. Duas almas tristes e desafortunadas. Um sentia o que o outro sentia. Ambos sentiam o que o povo sentia. Foi assim desde quando surgiram, por séculos e séculos desde o início do universo, e continuaria sendo assim, ultrapassando a perenidade e a potência, amando, morrendo e renascendo, sempre durante as tragédias, sempre quando aquela gente das ruas passasse pelos piores momentos de dor, miséria e desespero.

TEMPO HISTÓRICO: IDADE CONTEMPORÂNEA 2 

ESPAÇO GEOGRÁFICO: RÚSSIA

DATA DE PUBLICAÇÃO: 28/09/2025

AUTOR: FABIO GOHMEIZ 

REVISÃO:  CIAENTRELINHAS

ILUSTRAÇÃO: WIX / COPILOT

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